8 de out. de 2007

Contos:

Chá de Abu
Giovanni Lucas

Sobre o dia em que acordei com uma perna a mais, nem acreditei que era algo como nos contos de Gogol ou Kafka. Havia passado semanas lendo contos fantásticos, toda a obra de Guy de Maupassant, tudo de Kafka os russos como Gogol e Dostoievski me faziam muito bem, mas não achava que isso iria me tornar o Dom Quixote em pleno século XXI, que de tanto ler acabou por fazer parte de sua obra.

Eu era só mais um proletário como vários.

O pior foi que não levantei da cama por uma hora, esperei que Danuza a mulher que eu dormia aos fins-de-semana me acordasse com um telefonema. Mas o telefone não tocou e eu nem tentei ligar para minha mãe.

Enrolei-me nos lençóis e quase caí da cama, logo percebi que possuía uma perna nova, do tamanho das outras. E os dedos desta perna começavam com o dedão do lado direito. Como eu era canhoto o problema pareceu mais simples.

Naquele dia não fui trabalhar, não conseguiria vestir minhas calças. Coloquei um short velho que por coincidência já possuía um furo ao meio. Saí apenas para pegar o jornal, quando me deparei com a vizinha sueca que morava ao lado. Ela era galante, sensual, às vezes cheirava a cigarros importados e todos diziam que ela era uma estudante endinheirada que fugiu da Suécia para sustentar seus vícios longe dos pais.

Convidei-a para entrar . Ela entrou. Por sinal estava descabelada e sensual, de tamanha loucura nem percebeu minha estranha terceira perna. Ofereci uma bebida, tinha em casa uma velha garrafa de gim ou rum, e tinha um gosto fabuloso. Após três copos nos beijamos e depois de algumas carícias revelei a sueca que havia acordado com uma horrenda terceira perna.

Ela me deu a dica: Que tal cortá-la? Eu resmunguei em soluços: Claro! A tesuda sueca correu quase nua até seu apartamento, já eram quase seis horas da noite. A garota voltou com um vidro enorme de formol. Virou todo o líquido transparente que continha no vidro com cheiro forte no balde, grande e verde.

A garota ferveu água para um chá de Abu, dizia que era uma erva usada para amenizar a dor.

Meus dedos contorciam de tanto suor e cresciam, por um momento de excitação quis procurar meu órgão genital: Cadê!? Com o aparecimento da terceira perna ele devia ter sumido...pensei. Justo ele meu pênis que me deu tanta alegria e virtude.

Eu era apenas um cara em brasa, não sabendo de onde vinha tanto calor.

Bebi o chá e comi a sueca de raiva, nem sei como. Neste instante ela pegou a brilhante faca de sushi e cortou o dedo mindinho da terceira perna, jogando-o dentro do balde. Chorei de dor e o chá de Abu queimou minha angústia.

Cortei então meu dedo anelar deste meu pé da perna do meio. Não entendia por que ela gritava tanto, se era eu quem sentia a dor.

O balde verde ficou ainda mais vermelho com meu segundo dedo. Ela então cortou o dedo do meio com um ligeiro golpe que deixou o dedo ao lado pela metade. E por fim puxou este, deixando apenas meu dedão no meu pé inchado.

Pude ver a luz da Lua entrar no meu apartamento e a porta estava fechada. Para contrariar a dama disse que o último dedo ficaria para mim. Para que eu pudesse cortá-lo e em seguida decepar enfim minha terceira e assustadora perna.

Fiz o serviço, bebi mais um copo de chá ou de rum ou de gim. Meu estômago esquentou e deitei, me entregando ao desmaio e à dor.

Acreditei meio desacordado que havia me livrado da terceira perna horrenda. E não sei por que a garota sueca se foi.

Minha cabeça doía quando acordei na manhã seguinte. Meio tonto me esforcei para caminhar até a sacada e desfaleci quando me deparei com algo.

Havia um bilhete com letra feminina. O bilhete estava ao lado do balde verde com uma perna, um sapato de mulher, sangue e a faca de sushi. Ao lado um copo com um resto de chá de Abu. No bilhete dizia:

“Nunca me traia com uma vizinha sueca!”

Foi a letra de minha amada e o gosto de chá de Abu em minha boca que me fizeram procurar um psiquiatra.





Visitando Vinícius
uma estória verídica
Giovanni Lucas

Julieta moça mirrada, porém vistosa, andava com suas pernas longas e finas pelo colégio, segurando seus livros no peito em plena década de 70 em um colégio grande no centro do Rio de Janeiro. Entrou na classe e as cortinas brancas e longas levantaram-se bailando pelo vento leve que desceu redon-damente o tecido de algodão cru até o chão.

Para a próxima aula a professora de Literatura queria um projeto de entrevista, algo rebuscado e preciso para ser apresentado oralmente no palco dos horrores na frente da classe imensa de 45 alunos garotos espinhentos alegres e sacanas, garotas de saia, bronzeadas pela praia de Copacabana. Julieta, a moça do Rio, comentou com suas amigas sobre o desejo de conhecer Vinícius.

Sabia-se que Vinícius era um poeta galante com seus quase quarenta anos, voz caprichada, sossego no peito e anos de bossa nova. Encontrava-se sempre com o violão e um sorriso marrudo, amigos envoltos por mais uma criação musical.

Julieta e as amigas de classe concordaram em enfrentar a vergonha comum entre as garotas de 16 anos e agitaram seus sapatos escuros lustrados, bebendo goles de Coca-Cola in vitro. Caminharam até a presença do poeta, na praia de Ipanema.

A alguns metros do mar, se agitava uma onda de meio metro de altura forte como os desenhos da calçada em que caminhavam as garotas cariocas sem reparar ao fundo a beleza da cidade maravilhosa. Pudera então e chegaram até a presença do poeta.

Iniciou Julieta:

-Olá, com licença Seu Vinícius...

-Digam lá moças!

-A professora de Literatura pediu de lição um projeto de entrevista com uma personalidade e como a gente sempre te vê aqui pela praia, a gente quer saber se você poderia...

Vinícius deu uma gargalhada repetente, mas curta. Deixou transparecer seus dentes e deu um trago:

-Sabe moça não sei eu sou uma personalidade...mas se vocês quiserem eu recebo vocês na minha casa lá na Gávea...

-Que bom Vinícius!A gente te admira bastante...e seria um prazer poder entrevistá-lo...

Julieta e as outras moças cariocas, sorriram e marcaram um horário para a entrevista. Julieta anotou em seu caderno universitário de 10 matérias o endereço de Vinícius enquanto chegava bem perto a sentir o hálito fundo de cigarro de marca.

No dia marcado, as moças caminharam, e por fim apenas duas delas foram até a en-trevista. Preparam o gravador marrom de fita cassete e andaram pelas calçadas com ondas. Entraram no bairro e bateram na porta da casa marcada, às 9 da manhã.

Alguns segundos e Vinícius abriu a porta da casinha. A casa era antiga e fabulosa. Entraram por um longo quintal com trepadeiras no muro de concreto escuro.

Passaram por uma jovem senhora linda. Era uma morena sorridente que regava algumas plantas. Depois de anos ficaram sabendo que aquela era a terceira mulher de Vinícius, que o mesmo havia deixado por não ter encontrado nela poesia.

De fato, em parênteses. Vinícius foi um incompreendido. Não havia mulher que topasse sua poesia, não havia poesia que encontrasse paz em sua alma sem um beijo de mulher. Ele era sim, um incompreendido. Mas garanto que centenas de mulheres deixaram lágrimas anos depois quando o poeta se foi...

...Julieta soluçou e riram, Vinícius colocou a mão pela frente da testa e penteou os poucos cabelos escuros, quase grisalhos, acendeu um cigarro. Juntaram-se pelas cadeiras de varandas em borracha azul e Julieta ligou o gravador.

Cinco anos depois Julieta conseguiu ouvir a entrevista gravada na fita cassete chiada, sem derrubar lágrimas:

-Vinícius de Moraes, quando você iniciou suas composições poéticas?

Vinícius explicou o quanto havia rodado até se encontrar na música e nas letras.Contou como era sua vida no Rio, sobre as tardes em Itapuã, os parceiros de trabalho, sua relação com o mar, com as mulheres.

Julieta deu quatro voltas pelo quintal após ouvir a voz do poeta pelo gravador, sorrindo quando falou sobre Toquinho.

O vestido de mulher branco de algodão cru, que havia ganho do poeta, uma semana depois da entrevista, rodopiou em danças circulares assim como a cortina que o vento levantava no dia ensolarado na velha escola. A mesma escola das meninas de saia dos garotos espinhento. Lembrou da areia da praia, da calçada com ondas e do dia da visita.

E também recordou o romance que havia escondido de todos. Sim, Julieta percebeu o quanto era relutante a busca de Vinícius em torno da poesia e em torno das mulheres.

Julieta compreendeu sua poesia.

“No espelho em frente eu sou mais um freguês

Um homem que já foi feliz, talvez

E vejo que em seu rosto correm lágrimas de dor

Saudades, certamente, de algum grande amor”

(Trecho de A carta que não foi mandada, de Vinícius de Moraes.)

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